quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Ecos Literários | No caminho com Maiakóvski


Eduardo Alves da Costa. “No Caminho com Maiakóvski” [poesia reunida]. 
São Paulo: Geração editorial, 1ª ed., 2003 
 

 No caminho com Maiakóvski*
*Fragmento de poema de Eduardo Alves da Costa
 [...]
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada
.
[...]"

Eduardo Alves da Costa (1936), escritor, poeta, pensador, crítico social e artista plástico nascido em Niterói e criado em São Paulo, viu sua obra ser reduzida a quase um único poema seu, por décadas erroneamente atribuído ao poeta russo de vanguarda Vladimir Vladimirovitch Maiakovski (1893-1930). “No Caminho com Maiakovski” foi escrito na década de 1960, o livro no qual constava o poema estava esgotado desde 1986 e, em 2003, o poema nomeou a edição da Geração Editorial que trazia a obra poética completa do poeta e escritor. 

Como o arquiteto Oscar Niemeyer, ao salientar que o ser humano e a vida eram mais importantes que a arquitetura, Alves da Costa também defende que a vida é maior que a literatura e que o drama do ser humano é que o comove. No entanto, mesmo se divertindo ao afirmar que a divulgação errônea da autoria do poema ocultou toda sua obra, prova com suas ações que isso não o deixou menos humano, menos crítico da sociedade e menos atuante na vida.    

Referências

http://geracaoeditorial.com.br/caminho-com-maiakovski-no/
 

No Caminho com Maiakóvski (poema completo)

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakósvki.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz:
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!

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