quarta-feira, 20 de abril de 2022

Ecos Urbanos | Ai, que preguiça...

Caro leitor, você deve estar se perguntando por que este post não está dentro da categoria de Ecos Literários. Afinal, o título Ai, que preguiça... remete à (talvez) mais famosa primeira frase de um livro. Mas, não, não há engano. O fato é que minha preguiça não tem nada a ver com Mário de Andrade, tampouco com a criatura que dá título ao seu livro Macunaíma, que começa justamente com o tal ai, que preguiça.... Minha preguiça tem outra dimensão (se é que preguiça pode ter alguma). Enfim, tenho uma preguiça gigantesca de ler sempre as mesmas coisas e, depois, ficar imaginando quanto tempo ainda teremos pela frente para mudar... ou não mudar e continuar nossa derrocada cultural como sociedade e como humanidade.

Estádio do Pacaembu. Imagem: Brazil Journal

Um só exemplo dessas mesmas coisas, discutidas ad nauseam: a questão da preservação do patrimônio cultural, histórico, ambiental, paisagístico, arqueológico, turístico, afetivo, imaterial etc. Se algo foi declarado como patrimônio, esse algo tem valor para alguma comunidade e isso deve ser respeitado. Quanto mais ampla a noção desse valor, quanto mais ampla a comunidade que ele atinge, mais elevada é a instância governamental que exerce o poder de proteção.  Assim, um bem que é valioso para a cidade de Cambuquira, no sul de Minas Gerais, em geral não o é para o Rio de Janeiro, para o Ceará, tampouco para o Brasil. 

Pois bem, o bem cultural a que me refiro é o Estádio do Pacaembu, em São Paulo, conhecido até internacionalmente. O estádio é integralmente tombado, ou seja, com todas as suas instalações, pelos órgãos de preservação da cidade de São Paulo (Conpresp) e do Estado (Condephaat), por sua importância na história do esporte e na educação pela prática esportiva para a comunidade paulista. 

A tal preguiça surgiu quando li a primeira frase (síndrome da primeira frase) de um ótimo artigo da arquiteta Stela Da Dalt, no boletim do LabCidade*: “Existe uma antiga estratégia para forçar a aprovação de projetos com interesse público questionável: a do fato consumado. Primeiro faz, depois pede permissão, alegando que o prejuízo “público” de desfazer seria maior do que o de dar continuidade”.

Convenhamos, é triste, não é? Não vou entrar no mérito do que estão fazendo e fizeram com o estádio. Não. Tema longo e que não cabe aqui neste post cujo objetivo é também chamar a atenção para o caso específico do Pacaembu, como exemplo de vários outros, mas agora quero, sobretudo, destacar a frase acima e sua prática, que é, infelizmente, muito mais comum do que se pensa – fazer primeiro para depois ver o projeto ser aprovado ou anistiado, sem qualquer punição aos infratores (profissionais liberais, proprietários, servidores públicos e políticos). Com certeza muitos colegas arquitetos já viram isso acontecer em suas cidades. Essa estratégia é cruel, desrespeitosa e tem servido a vários senhores, mas não ao organismo cidade, casa maior de todos nós.

Afinal, além do seu corpo técnico, cidades sérias, administradas por políticos sérios e comprometidos com o bem-estar geral da cidade e de seus cidadãos, têm inúmeros colegiados, conselhos, grupos de apoio, técnicos e comissões que cuidam da gestão urbana, das políticas de uso e ocupação do solo, das questões relativas à habitação, saúde, educação, paisagem urbana, da preservação dos bens culturais etc... São grupos que se reúnem, debatem e pensam a cidade – em teoria, a cidade democrática, acolhedora e inclusiva. Nem sempre, o resultado atende ou agrada a todos; por isso o importante é participar, de alguma forma, da elaboração das regras, pois, uma vez aprovadas, regras devem ser cumpridas até uma nova discussão, nova modificação e por aí vai. Isso é cidadania.

Em suma, um certo Pavilhão do Pacaembu foi construído à revelia da aprovação dos órgãos de preservação mencionados e com intervenções estruturais, o que é crime e, portanto, os infratores deveriam ser julgados de acordo e a instalação dita “provisória”, demolida. Se vai ser? Ai, que preguiça... Num país onde coisas absurdas são normalizadas, a minha preguiça é plenamente justificável, mas não minha indignação. Sigo usando os instrumentos que tenho para expressá-la – pensamento crítico, minha fala e minha pena. 

Em tempo, vale ler o artigo O Estádio do Pacaembu não é do povo? da colega arquiteta Cecília Rodrigues dos Santos, há anos, na batalha pelo patrimônio.

* O LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) é coordenado pelas prof. Paula Santoro e Raquel Rolnik e desenvolve projetos de pesquisa ligados a planejamento urbano e estudos da paisagem.  

Referências

http://www.labcidade.fau.usp.br/faz-primeiro-aprova-depois-a-descaracterizacao-do-pacaembu/ 

https://braziljournal.com/quer-sua-marca-no-pacaembu-prepare-se-para-pagar 

https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.210/6857

8 comentários:

  1. Quando isso irá mudar? Tenho feito a mesma pergunta. Anita, obrigada por este texto, que dá a voz a muito de nós através do seu trabalho. Um beijo

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    1. Obrigada, Silvia, mas temos que falar, falar, falar, apesar da preguiça... Hay que luchar... siempre, beijos

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  2. Muito bom Anita, estou indignado, cresci admirando o Pacaembu, os poucos jogos de futebol que assisti, foram lá, o juramento a bandeira (pratica dos jovens reservistas) fiz no Pacaembu, tenho uma memória afetiva por aquele lugar, as manifestações políticas dos anos 1980/1990 foram na Praça Charles Miller, perdemos o Estádio, a cidade perdeu um espaço de orgulho de sua história urbana. Muito triste.

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    1. Pois é, parece que a derrocada é iminente e cada dia mais rápida. quando acordaremos? Quando a sociedade vai acordar? Quando tudo for terra arrasada? Aí, não adiantará mais... Triste, cansativo, deprimente ver tudo isso... beijos e obrigada por comentar

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  3. Tristes tempos esses em que "a força da grana que ergue e destroi coisas belas" vai tomando conta de tudo.
    bjs,

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  4. Muito bom Anitinha! Você escreve e nos mostra a realidade que é bom para conhecermos como o fato é.

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  5. O entendimento de que aquilo que é muito importante em uma localidade pode ter pouco ou nenhum significado em outra, conforme você apontou, é decisivo. Estou convencida de que um maior nível de informação sobre o assunto entre a população em geral tem um papel de destaque em tudo o que envolve a preservação de patrimônio histórico, mas, para isso, é necessário educar e informar.
    Parabéns pelo texto, um grande abraço.

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    1. Exato, Marta, informar e educar é essencial e é o que você faz com seu ótimo blog "História e outras Histórias" (https://martaiansen.blogspot.com/ ). Obrigada por comentar, grande abraço.

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