sábado, 18 de março de 2023

Ecos Culturais | Niède Guidon, arqueóloga

Foto aérea da Serra da Capivara, PI. Divulgação
Existem mulheres incríveis em todos os ramos de conhecimento. Alguém duvida? Já dizia o sambista que quem não gosta de samba está doente do pé. Que me desculpem os preconceituosos, mas quem não valoriza e respeita as mulheres (ou as diferenças) está doente do pé, da cabeça e da alma. Então, em tempos de falta de ídolos de fato, de indivíduos que mereçam tal título e a responsabilidade que ele acarreta, que possamos nos inspirar em mulheres como a arqueóloga Niède Guidon (1933) que, com seus 90 anos recém-completados, leva o prestígio e a honra de ser responsável por descobertas incríveis sobre a povoação do ser humano na América e por implantar o Parque Arqueológico da Serra da Capivara, no Piauí (ver aqui).
 
Profissional super premiada nacional e internacionalmente, chamada de “onça” pelos amigos, Niède Guidon, filha de pai francês e mãe brasileira, nasceu na cidade paulista de Jaú, fez História Natural na USP, especializou-se em Arte Rupestre e doutorado em Arqueologia Pré-histórica na Universidade Sorbonne em Paris, voltou ao Brasil e com muito trabalho, várias controvérsias e apoio da França e de grande parte da comunidade local, ela identificou, estudou e divulgou um dos maiores parques arqueológicos do mundo. Dizia que vivia o presente “procurando o passado” e, de fato, descobriu na Serra da Capivara indícios, vestígios humanos e pinturas rupestres com datação de 26.000 anos, o que levou a um questionamento das teorias anteriores sobre a chegada do ser humano nas Américas. Levou ao mundo o nome do nosso país, do Piauí e da pequena cidade de São Raimundo Nonato. Hoje, a cidade tem faculdade de arqueologia e um lindo trabalho social por trás. Desde o início das pesquisas, Guidon envolveu e educou a comunidade local, onde conseguiu guias, funcionários e assistentes.Falou-lhes da riqueza e da importância daquele local, e ensinou-lhes não só a escavar, mas a apreciar e valorizar aquele pedaço de chão. Deu-lhes conhecimento e formação para que se desenvolvessem, mas muitos ainda se ressentem da criação do parque.

Niède Guidon. Foto: Acervo Fumdham
O início. Em 1963, Niède Guidon trabalhava no Museu do Ipiranga da USP e organizou uma exposição sobre pintura rupestre de Minas Gerais. Na exposição, um visitante (o então prefeito de Petrolina) mostrou-lhe fotos de pinturas semelhantes às da exposição na região de São Raimundo Nonato, no Piauí. Era a primeira vez que Guidon ouvia falar dos sítios arqueológicos do Piauí. Ora, cientistas (e tradutores) são bichos curiosos por natureza  e foi o que bastou para Niède querer se aventurar por lá, mas ela só conseguiu visitar e fotografar o local em 1970 e, com esse material, conseguiu que o governo francês, onde residia na época, financiasse uma pesquisa. Assim, foi criada a Missão Arqueológica Francesa no Piauí, na década de 1970, com um grupo de arqueólogos dos dois países, sob a coordenação de Niède Guidon. 
 
Trilhas e Arte Rupestre.Serra da Capivara. Divulgação.
Era só o começo, mas a pesquisa foi tão profícua que a missão passou a ser permanente, mesmo com a resistência e crítica de outros cientistas em função da descoberta de Guidon: a datação dos vestígios encontrados chegava a 26.000 anos e questionava a principal teoria sobre o povoamento das Américas. Polêmicas à parte, o trabalho continuou e, em 1979, foi criado o Parque Nacional Serra da Capivara, cuja preservação é garantida pela FUMDHAM (Fundação Museu do Homem Americano), entidade criada por Niède Guidon. A Fundação administra o Parque junto com o  Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Em 1991 a Serra da Capivara foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Em novembro de 2020, Niède Guidon tomou posse na Academia Piauiense de Letras e, em 2022, na Academia Brasileira de Ciências. 

Desde que se aposentou nos anos 1990, da universidade francesa onde lecionava, Niède mora em São Raimundo Nonato e os frutos de seu trabalho estão expostos não só no Parque Nacional da Serra da Capivara e na Fundação do Museu do Homem Americano (FUMDHAM), mas também nos dois museus que ela criou: o Museu do Homem Americano e o Museu da Natureza (MuNa).  

Museu do Homem Americano. Imagem:Wiki  

Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham). Criada para garantir a preservação do patrimônio cultural e natural do Parque Nacional Serra da Capivara, é uma entidade civil de interesse público, sem fins lucrativos, que realiza atividades científicas interdisciplinares, culturais e sociais. A sede dispõe de administração, laboratórios de pesquisas, centro de documentação, biblioteca, auditório, anfiteatro e reserva técnica. Faz parcerias com universidades e instituições nacionais e internacionais. São destaques a Plataforma Capivara, banco de dados criado para reunir o conhecimento acumulado nas últimas décadas; a Revista Científica Fumdhamentos, desde 1996 divulga as pesquisas das áreas de conhecimento do Parque e afins; os Projetos Socioculturais em educação ambiental, horticultura, artesanato, cerâmica (trabalho premiado), sempre procurando integrar a população local com o patrimônio cultural e natural, priorizando a sustentabilidade individual e da região para, aos poucos, transformar a vida das comunidades.

Pedra Furada, Serra da Capivara. Divulgação

Parque Nacional da Serra da Capivara.  Território com o maior número de sítios arqueológicos das Américas, cobre 130 mil hectares, mais de 1300 sítios (204 prontos para visitação, 17 acessíveis a pessoas com dificuldades de locomoção).Os Circuitos e Trilhas incluem sítios e passeios variados, em função do tempo disponível para visitação e do grau de dificuldade (do mais suave ao mais aventureiro). Os circuitos incluem: Serra Hombu, Baixão das Mulheres, Pedra Branca, Desfiladeiro da Capivara e Baixão da Pedra Furada (onde está o Centro de Visitantes). O parque oferece ainda Ecoturismo nas quatro serras (da Capivara, Branca, Vermelha e Talhada), para aventuras ao ar livre, trilhas, rapel, caminhadas e passeios de bicicleta, diferentes paisagens para ver os monumentos geológicos, a fauna e a flora da caatinga. 

Museu do Homem Americano. Situado na sede da Fumdham, foi criado para divulgar a importância do patrimônio cultural dos povos pré-históricos na região e exibe os resultados de mais de quarenta anos de pesquisas realizadas no parque: fósseis dos seres humanos que viveram ali, objetos, adornos, instrumentos pré-históricos, esqueletos, urnas funerárias entre outros. 

Museu da Natureza (MuNa). Inaugurado no final de 2018, em uma cidade próxima a São Raimundo Nonato, o MuNA se dedica à natureza e aos animais da Serra da Capivara, exibindo descobertas paleontológicas, ou seja, fósseis de animais que viveram ali há milhares de anos, alguns deles atualmente extintos.  

 

De modo geral, o parque recebe em média 20 mil visitantes por ano, o que é muito baixo se comparado a outros parques. De qualquer forma, ainda faltam na região: recursos financeiros para a gestão do parque, hotéis de qualidade e facilidade de acesso. Por exemplo, inaugurado em 2015 por pressão da FUMDHAM, o aeroporto perto de São Raimundo só começou a operar em 2022. Ao que parece, não só o turista mas também as autoridades não dão o devido valor aos tesouros de sua própria história.    

Referências 

https://www.360meridianos.com/2021/03/niede-guidon-serra-capivara.html

https://www.360meridianos.com/especial/serra-da-capivara

http://fumdham.org.br/

https://www.brasilfashionnews.com.br/serra-da-capivara-a-surpresa-do-seculo-detalha-o-processo-de-descoberta-do-maior-acervo-de-pinturas-rupestres-do-mundo/

https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2023/03/12/interna_gerais,1467701/amp.html

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ni%C3%A8de_Guidon

https://pt.wikipedia.org/wiki/Aeroporto_de_S%C3%A3o_Raimundo_Nonato 

https://www.saoraimundo.com/index.php/ceramica-serra-da-capivara-ganha-premio-de-melhor-projeto-sustentabilidade-do-brasil/

11 comentários:

  1. Belíssima homenagem! Que vida essa, hein! Na faculdade de geografia o professor Aziz Ab'Saber sempre contava histórias da Niède. Ele a admirava tanto :)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Verdade, cheguei a ter aulas com o Azis... Ele e a expressão " mar de morros"! Obrigada por comentar, bjs

      Excluir
  2. Maravilha Anita! Viva Niède, um patrimônio tambem como pessoa e por todo legado deixado.

    ResponderExcluir
  3. Que texto ótimo! Que trabalho maravilhoso e que grande legado está sendo deixado por Niède Guidon!

    ResponderExcluir
  4. Muito bom, Anita! Muita vontade de visitar a Serra da Capivara e ver de perto toda essa lindeza ✨️ (Telma)

    ResponderExcluir
  5. Obrigado Anita, Niède é uma referência e devemos muito a sua atuação apaixonada e comprometida com a ciência.

    ResponderExcluir
  6. Ótimo texto Anitinha! Uma aula de conhecimento que todo brasileiro deveria saber.Excelente trabalho de Niéde.É uma pena que neste Brasil,muitos não reconhecem e nem conhecem.

    ResponderExcluir
  7. Que beleza, gente! A Niède Guidon foi e é uma lutadora e teve o relevo que merece, sempre.
    Precisamos de mais gente assim!
    Por enquanto, como diz você, Anita, falta muito ainda pro país valorizar com ênfase, ajuda, recursos, ações... mas acredito que, com tamanho histórico e herança que deixa, alguma autoridade, movida pelo bom-senso, há de se debruçar sobre esse patrimônio que vale mais do que joias.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi , Valquíria, sem a menor dúvida, querida. Que bons ventos continuem soprando sobre nossa herança cultural. Muito obrigada pelos seus comentários certeiros. Beijo grande

      Excluir
  8. Que beleza Anita ..Obrigada por compartilhar. Beijos

    ResponderExcluir