Alpendre posterior do Sítio Santa Luiza, em São Paulo, que funciona como escola infantil e de ensino fundamental. Foto: Anita Di Marco |
Projeto Vida
é o nome da escola da minha sobrinha-neta. Uma como tantas, pensei, de início. No entanto, o
próprio nome já me sugeria algo diferente. Talvez, aí exista algo mais,
pensei com meus botões. Além disso, a curiosidade de alguém com olhar treinado
pela formação em Arquitetura sempre fala mais alto. Escola nova para mim (que
não tenho crianças pequenas há alguns bons anos) e proposta nova para a Maitê
(a sobrinha-neta). Depois, fiquei sabendo que a escola ocupava um ótimo espaço em uma área onde minha irmã, meus primos e eu brincávamos quando
crianças. Fiquei mais curiosa ainda para rever o lugar.
Dizem
os pseudossábios de plantão que, depois de anos sem ver ou ir a determinado
lugar que se frequentou quando criança, o melhor a fazer é evitar revê-lo, porque
corre-se o risco de uma grande decepção e de perder aquela imagem criada na
infância. No entanto, decidi que queria conhecer o espaço, sim, e lá fomos nós
(minha irmã, a avó da menina, e eu) buscar a lindinha Maitê!
Afinal,
o mundo mudou, a pedagogia mudou, o entorno mudou. Na minha infância, aquela
era uma imensa área verde, com uma casa grande bastante antiga, toda branca,
janelas com venezianas pintadas em verde escuro, alpendre com esteios
de madeira nas duas fachadas (anterior e posterior), também pintados na cor verde, cobertura de duas águas e telhas de barro, tipo capa-canal. Caiadas, as
paredes externas eram de taipa de pilão e as divisórias internas,
provavelmente, deveriam ser de pau-a-pique.
Fui pesquisar e
descobri que o casarão do Sítio Santa Luzia (Eureca! É esse o nome do lugar que
tinha sumido nos escaninhos da minha memória!), data da primeira metade do
século XIX e pertenceu ao engenheiro agrônomo uruguaio Joaquim Eugênio de Lima
(1845-1902), o mesmo que idealizou
a avenida criada em 1891, ao longo do espigão central da cidade "que corre na
direção do morro do Jaraguá e com boa parte recoberta pela mata virgem, o Caaguaçú", a Avenida Paulista.
Eugênio de Lima ainda dá nome a uma de suas transversais.
Alpendre frontal do Sítio Santa Luzia. Ao fundo, parte do edifício no lote lindeiro, em área desmembrada do lote original. Foto: Anita Di Marco |
Segundo
o Condephaat, órgão estadual responsável pelo tombamento do sítio, ocorrido em
1982, reformas anteriores a 1917 substituíram o revestimento do piso e o forro
de alguns compartimentos. Em 1918, foram efetuadas subdivisões internas com
paredes em alvenaria de tijolos, a reconstrução do jirau e a construção de dois
banheiros. É deste período o desmembramento de algumas áreas do lote.
Puxando
pela memória, lembro-me de que, além da casa principal, no terreno havia uma
grande área verde de mata natural e uma bica - um cano de uns cinco centímetros
de diâmetro - que trazia água de mina e a despejava em um tanque. Baixinha como
era, eu morria de medo de cair ali dentro e morrer afogada... Ah! Crianças! Enfim,
eu devia ter uns 7-8 e minha irmã, uns 9-10 anos. Toda semana, lá íamos nós e
nossas primas pegar água da mina, colher e comer jabuticabas, pitanga e jambo. A
pergunta frequente era: Vamos à bica?
O lugar era por nós denominado “bica”, simples assim. Bom isso aconteceu há
anos, há mais de 50 anos. Minha memória é boa, admito. Ponto para a memória!
Voltando
ao início de 2017, resolvi contrariar os pseudossábios de plantão e fui buscar
a Maitê e rever aquela área, ou melhor, conhecer o espaço da escola e descobrir
o que tinham feito com a famosa “bica” dos meus passeios de criança. Tive uma
agradável surpresa. Como já disse, o entorno mudou, o terreno havia sido
desmembrado e parte dele, vendido; no entanto, muitas árvores foram
preservadas e os arquitetos que projetaram o novo conjunto ladeando o antigo terreno do Sítio Santa Luzia souberam como
adaptar-se à beleza centenária daquelas árvores e daquele ambiente. Ponto para os arquitetos!
Toda a antiga edificação foi adaptada e se mantém viva e ativa pelo uso. Foto: Anita Di Marco |
Na
área da escola, 2000 m2, surpresa e admirada, olhando ao redor, constatei que
quase tudo estava ali (a bica não estava; imagino que, provavelmente, tenha sido
canalizada). Segundo sua diretora, Mônica Padrioni, a escola aluga
aquela área há 25 anos, mas os proprietários tiveram a consciência de impor
certas restrições e condições para alugar o imóvel: a preservação tanto da casa
quanto da área verde. Ponto
para os proprietários!
Painel colocado ao lado da placa com o nome da Escola, indicando e valorizando o novo uso no antigo imóvel. Foto: Anita Di Marco |
E
mais um ponto, um ponto enorme para a
Escola Projeto Vida. Além de adotar práticas educacionais inovadoras,
inclusivas, desenvolvendo valores humanitários e de respeito às diferenças, estimulando novas respostas e saberes dos alunos, a Projeto Vida harmonizou-se
com o lugar preservando e adaptando as instalações antigas, construiu novas
unidades separadas sem destruir o meio ambiente, dentre eles um lindo espaço
multiuso, que serve como refeitório e sala de eventos, com estrutura metálica e
vidro, conservando belos exemplares de antigas árvores existentes - flamboyants,
ipês, sibipirunas etc., além do pinheiro que emerge do piso do novo espaço e sai
pela cobertura, com uma solução inteligente que protege e dá singularidade ao
local. Respeitoso, o novo ali não choca
e não afronta o centenário casarão.
Refeitório/multiuso e o tronco do pinheiro brotando do chão e indo além. Foto: Anita Di Marco |
Casa de Vidro | Refeitório/multiuso. Vista externa. Foto: Anita Di Marco |
Esta
Casa de Vidro não tem a assinatura da famosa Lina, mas da arquiteta Adriana
Zanetti, que soube inspirar-se nas ideias e propostas pedagógicas das fundadoras
e diretoras da escola, Mônica Padroni, Silvia Elayne e Lêda Cruz e, mais ainda,
levando em conta, para a integração do novo naquela área, as sensações e a forma de
utilização dos pequenos usuários. Aliás,
trabalhos das crianças permeiam todos os ambientes da escola e estão
presentes nos azulejos, nas portas dos banheiros, nas janelas, nas árvores e nas paredes de
vidro do novo refeitório. Mesmo durante as refeições, ou em outras atividades, as
crianças se sentem valorizadas, respeitadas e descobrem que a natureza não é
hostil, aprendem a respeitar e a conviver com o diferente, com o não
convencional e com o meio ambiente.
Área externa. Intervenção dos alunos. Foto: Anita Di Marco |
Intervenção dos alunos, mostrando dados históricos do antigo sítio. Foto: Anita Di Marco |
Casa de Vidro, refeitório/espaço multiuso. Interferência dos alunos no vidro. Foto: Anita Di Marco |
Brinquedos educativos construídos
com materiais naturais, casinhas para pequenos animais, móbiles nas árvores e
caminhos tratados completam o ambiente escolar e lúdico, porém deixam espaço de
sobra para as descobertas infantis. (Ver entrevista com arquiteta Adriana
Zanetti aqui)
Área externa. Foto: Anita Di Marco |
Área externa. Foto: Anita Di Marco |
Área externa. Caminhos. Foto: Anita Di Marco |
Estudar
ali é um privilégio, sem dúvida. Seria muito bom se toda criança pudesse estudar
em locais com este enfoque e se todos os pais percebessem e entendessem os motivos: pela proposta pedagógica, pelo ambiente natural, pela oportunidade
de conviver com construções e técnicas construtivas antigas, pelo ensejo
prático de aprender a respeitar o passado, nossos antepassados, seus saberes e
fazeres. Acredito que as crianças cresceriam melhor, mais saudáveis, mais
integradas, mais respeitadas e respeitosas com o entorno, com a história, com o
patrimônio, com o diferente e com os outros, se pudessem estudar em um ambiente
assim.
Área externa. Sala de aula. Foto: Anita Di Marco |
Parabéns
aos proprietários, arquitetos, diretores, educadores, assistentes e alunos, por
preservarem, vivenciarem e garantirem a continuidade ativa e dinâmica do
passado na preparação para o futuro.
Vida
longa à Escola Projeto Vida. Que consiga chegar perto do sonho do primeiro morador
daquele casarão de cerca de 200 anos, Joaquim Eugênio de Lima, homem à frente
de seu tempo que, não apenas sonhou e
criou bairros e avenidas na cidade, mas, sobretudo, sonhou em ver um povo
educado, esclarecido, e consciente, um homem que sonhou um sonho de justiça
social.
Escola Projeto Vida, em Santana, São Paulo. Imagem: Anita Di Marco |
Referências:
- www.projetovida.com.br
- http://www.projetovida.com.br/dialogos-comunidade-casa-vidro.php
- http://www.portaldobixiga.com.br/ruas-e-avenidas/eugeniodelima/
- http://www.preservasp.org.br/forum/index.php?topic=62.0
- www.projetovida.com.br
- http://www.projetovida.com.br/dialogos-comunidade-casa-vidro.php
- http://www.portaldobixiga.com.br/ruas-e-avenidas/eugeniodelima/
- http://www.preservasp.org.br/forum/index.php?topic=62.0
Amei seu texto...Linda história.
ResponderExcluirOlá Cristiane,
ExcluirE não é? Acho fantástico quando as pessoas conseguem trabalhar com perspectivas de futuro com base real no passado. Obrigada pela visita. Grande abraço e volte sempre
Anita
Tia...só seres humanos com um olhar tão profundo e sensível conseguem fazer de uma simples "ida" ao colégio da sobrinha-neta uma poesia! Histórias de passado (suas idas a "bica") e presente (Maitê estudando na "bica") unidas de uma certa forma! Obrigada pelo "presente! que você nos deu.. será sempre, uma recordação para mim e para Maitê! Bjos com carinho, Clau
ResponderExcluirObrigada, clau! Fiquei emocionada. A vida é isso, né? Tudo que nos acontece, de um forma ou outra, compõe o que somos!!! Jamais imaginei que a "bica" estava tão viva!!!! Fiquei muito feliz em fazer este texto-artigo-reportagem-crônica... beijos, querida
ExcluirAnita