domingo, 5 de março de 2017

Memória & Paisagem Construída | Escola & Patrimônio

Alpendre posterior do Sítio Santa Luiza, em São Paulo, que funciona como escola infantil e de ensino fundamental. Foto: Anita Di Marco

Projeto Vida é o nome da escola da minha sobrinha-neta. Uma como tantas, pensei, de início. No entanto, o próprio nome já me sugeria algo diferente. Talvez, aí exista algo mais, pensei com meus botões. Além disso, a curiosidade de alguém com olhar treinado pela formação em Arquitetura sempre fala mais alto. Escola nova para mim (que não tenho crianças pequenas há alguns bons anos) e proposta nova para a Maitê (a sobrinha-neta). Depois, fiquei sabendo que a escola ocupava um ótimo espaço em uma área onde minha irmã, meus primos e eu brincávamos quando crianças. Fiquei mais curiosa ainda para rever o lugar. 
Dizem os pseudossábios de plantão que, depois de anos sem ver ou ir a determinado lugar que se frequentou quando criança, o melhor a fazer é evitar revê-lo, porque corre-se o risco de uma grande decepção e de perder aquela imagem criada na infância. No entanto, decidi que queria conhecer o espaço, sim, e lá fomos nós (minha irmã, a avó da menina, e eu) buscar a lindinha Maitê!
Afinal, o mundo mudou, a pedagogia mudou, o entorno mudou. Na minha infância, aquela era uma imensa área verde, com uma casa grande bastante antiga, toda branca, janelas com venezianas pintadas em verde escuro, alpendre com esteios de madeira nas duas fachadas (anterior e posterior), também pintados na cor verde, cobertura de duas águas e telhas de barro, tipo capa-canal. Caiadas, as paredes externas eram de taipa de pilão e as divisórias internas, provavelmente, deveriam ser de pau-a-pique. 
O antigo casarão. Foto: Anita Di Marco
Fui pesquisar e descobri que o casarão do Sítio Santa Luzia (Eureca! É esse o nome do lugar que tinha sumido nos escaninhos da minha memória!), data da primeira metade do século XIX e pertenceu ao engenheiro agrônomo uruguaio Joaquim Eugênio de Lima (1845-1902), o mesmo que idealizou a avenida criada em 1891, ao longo do espigão central da cidade "que corre na direção do morro do Jaraguá e com boa parte recoberta pela mata virgem, o Caaguaçú", a Avenida Paulista. Eugênio de Lima ainda dá nome a uma de suas transversais. 
Alpendre frontal do Sítio Santa Luzia. Ao fundo, parte do edifício no lote lindeiro, em área desmembrada do lote original. Foto: Anita Di Marco
Segundo o Condephaat, órgão estadual responsável pelo tombamento do sítio, ocorrido em 1982, reformas anteriores a 1917 substituíram o revestimento do piso e o forro de alguns compartimentos. Em 1918, foram efetuadas subdivisões internas com paredes em alvenaria de tijolos, a reconstrução do jirau e a construção de dois banheiros. É deste período o desmembramento de algumas áreas do lote. 

Puxando pela memória, lembro-me de que, além da casa principal, no terreno havia uma grande área verde de mata natural e uma bica - um cano de uns cinco centímetros de diâmetro - que trazia água de mina e a despejava em um tanque. Baixinha como era, eu morria de medo de cair ali dentro e morrer afogada... Ah! Crianças!  Enfim, eu devia ter uns 7-8 e minha irmã, uns 9-10 anos. Toda semana, lá íamos nós e nossas primas pegar água da mina, colher e comer jabuticabas, pitanga e jambo. A pergunta frequente era: Vamos à bica? O lugar era por nós denominado “bica”, simples assim. Bom isso aconteceu há anos, há mais de 50 anos. Minha memória é boa, admito. Ponto para a memória!
Fachada lateral. Foto: Anita Di Marco
Voltando ao início de 2017, resolvi contrariar os pseudossábios de plantão e fui buscar a Maitê e rever aquela área, ou melhor, conhecer o espaço da escola e descobrir o que tinham feito com a famosa “bica” dos meus passeios de criança. Tive uma agradável surpresa. Como já disse, o entorno mudou, o terreno havia sido desmembrado e parte dele, vendido; no entanto, muitas árvores foram preservadas e os arquitetos que projetaram o novo conjunto ladeando o antigo terreno do Sítio Santa Luzia souberam como adaptar-se à beleza centenária daquelas árvores e daquele ambiente. Ponto para os arquitetos!
Toda a antiga edificação foi adaptada e se mantém viva e ativa pelo uso. Foto: Anita Di Marco
 Na área da escola, 2000 m2, surpresa e admirada, olhando ao redor, constatei que quase tudo estava ali (a bica não estava; imagino que, provavelmente, tenha sido canalizada). Segundo sua diretora, Mônica Padrioni, a escola aluga aquela área há 25 anos, mas os proprietários tiveram a consciência de impor certas restrições e condições para alugar o imóvel: a preservação tanto da casa quanto da área verde. Ponto para os proprietários!

Painel colocado ao lado da placa com o nome da Escola, indicando e valorizando o novo uso no antigo imóvel. Foto: Anita Di Marco
E mais um ponto, um ponto enorme para a Escola Projeto Vida. Além de adotar práticas educacionais inovadoras, inclusivas, desenvolvendo valores humanitários e de respeito às diferenças, estimulando novas respostas e saberes dos alunos, a Projeto Vida harmonizou-se com o lugar preservando e adaptando as instalações antigas, construiu novas unidades separadas sem destruir o meio ambiente, dentre eles um lindo espaço multiuso, que serve como refeitório e sala de eventos, com estrutura metálica e vidro, conservando belos exemplares de antigas árvores existentes - flamboyants, ipês, sibipirunas etc., além do pinheiro que emerge do piso do novo espaço e sai pela cobertura, com uma solução inteligente que protege e dá singularidade ao local. Respeitoso, o novo ali não choca e não afronta o centenário casarão.  

Refeitório/multiuso e o tronco do pinheiro brotando do chão e indo além. Foto: Anita Di Marco
Casa de Vidro | Refeitório/multiuso. Vista externa. Foto: Anita Di Marco
Esta Casa de Vidro não tem a assinatura da famosa Lina, mas da arquiteta Adriana Zanetti, que soube inspirar-se nas ideias e propostas pedagógicas das fundadoras e diretoras da escola, Mônica Padroni, Silvia Elayne e Lêda Cruz e, mais ainda, levando em conta, para a integração do novo naquela área, as sensações e a forma de utilização dos pequenos usuários. Aliás, trabalhos das crianças permeiam todos os ambientes da escola e estão presentes nos azulejos, nas portas dos banheiros, nas janelas, nas árvores e nas paredes de vidro do novo refeitório. Mesmo durante as refeições, ou em outras atividades, as crianças se sentem valorizadas, respeitadas e descobrem que a natureza não é hostil, aprendem a respeitar e a conviver com o diferente, com o não convencional e com o meio ambiente. 
Área externa. Intervenção dos alunos. Foto: Anita Di Marco
 Intervenção dos alunos, mostrando dados históricos do antigo sítio. Foto: Anita Di Marco
Casa de Vidro, refeitório/espaço multiuso. Interferência dos alunos no vidro. Foto: Anita Di Marco
Brinquedos educativos construídos com materiais naturais, casinhas para pequenos animais, móbiles nas árvores e caminhos tratados completam o ambiente escolar e lúdico, porém deixam espaço de sobra para as descobertas infantis. (Ver entrevista com arquiteta Adriana Zanetti aqui
Área externa. Foto: Anita Di Marco
 Área externa. Foto: Anita Di Marco
Área externa. Caminhos. Foto: Anita Di Marco
  No entanto, o que mais me chamou a atenção e me motivou a escrever este texto foi o fato de a escola preservar a antiga sede do Sítio Santa Luzia, o cuidado percebido com aquelas estruturas e, mais do que isso, a consciência sobre a necessidade de repassar para os pequenos a importância de preservar o nosso patrimônio, de lhes mostrar de onde viemos a fim de, solidamente, sustentar os seus/nossos passos futuros. Dimensão histórica é fundamental, desde sempre. Ponto para a integração presente|passado|futuro!
Área externa. Brinquedos. Foto: Anita Di Marco

 Área externa. Brinquedos. Foto: Anita Di Marco
Estudar ali é um privilégio, sem dúvida. Seria muito bom se toda criança pudesse estudar em locais com este enfoque e se todos os pais percebessem e entendessem os motivos: pela proposta pedagógica, pelo ambiente natural, pela oportunidade de conviver com construções e técnicas construtivas antigas, pelo ensejo prático de aprender a respeitar o passado, nossos antepassados, seus saberes e fazeres. Acredito que as crianças cresceriam melhor, mais saudáveis, mais integradas, mais respeitadas e respeitosas com o entorno, com a história, com o patrimônio, com o diferente e com os outros, se pudessem estudar em um ambiente assim. 
Área externa. Sala de aula. Foto: Anita Di Marco
Senão vejamos. A arquitetura, ciência fundamental que pensa o ser humano no espaço, que atua para melhorar nossos ambientes de moradia, trabalho, estudo e lazer, e a própria cidade (porque cada projeto cria cidade e interfere no todo), não foi impedida de criar e propor, mas respeitou, dialogou e não se impôs ao ambiente. O ambiente não sufocou a arquitetura. Tampouco impediu a inovação, a tecnologia, a contemporaneidade e a liberdade. O patrimônio não foi engessado e mumificado, mas tem uso intenso e se mantém vivo e pulsante. Passado, presente e futuro. Todos convivem em harmonia.
Parabéns aos proprietários, arquitetos, diretores, educadores, assistentes e alunos, por preservarem, vivenciarem e garantirem a continuidade ativa e dinâmica do passado na preparação para o futuro.
Vida longa à Escola Projeto Vida. Que consiga chegar perto do sonho do primeiro morador daquele casarão de cerca de 200 anos, Joaquim Eugênio de Lima, homem à frente de seu tempo que, não apenas sonhou e criou bairros e avenidas na cidade, mas, sobretudo, sonhou em ver um povo educado, esclarecido, e consciente, um homem que sonhou um sonho de justiça social. 
Escola Projeto Vida, em Santana, São Paulo. Imagem: Anita Di Marco
Referências:  
- www.projetovida.com.br  
- http://www.projetovida.com.br/dialogos-comunidade-casa-vidro.php   
- http://www.portaldobixiga.com.br/ruas-e-avenidas/eugeniodelima/ 
- http://www.preservasp.org.br/forum/index.php?topic=62.0

4 comentários:

  1. Respostas
    1. Olá Cristiane,
      E não é? Acho fantástico quando as pessoas conseguem trabalhar com perspectivas de futuro com base real no passado. Obrigada pela visita. Grande abraço e volte sempre
      Anita

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  2. Tia...só seres humanos com um olhar tão profundo e sensível conseguem fazer de uma simples "ida" ao colégio da sobrinha-neta uma poesia! Histórias de passado (suas idas a "bica") e presente (Maitê estudando na "bica") unidas de uma certa forma! Obrigada pelo "presente! que você nos deu.. será sempre, uma recordação para mim e para Maitê! Bjos com carinho, Clau

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    Respostas
    1. Obrigada, clau! Fiquei emocionada. A vida é isso, né? Tudo que nos acontece, de um forma ou outra, compõe o que somos!!! Jamais imaginei que a "bica" estava tão viva!!!! Fiquei muito feliz em fazer este texto-artigo-reportagem-crônica... beijos, querida
      Anita

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